Destaques

Destaques

Imprimir

Artigos - 11/09/20

Vicissitudes do critério de rateio das cotas de exportação de açúcar aos mercados preferenciais.

Veículo: Editora IASP. Ano de publicação: 2020 (edição digital)
Autor(es): Mário Luiz Oliveira da Costa

Escrevo esse artigo com grande alegria e renovada honra.

Grande alegria por participar de mais uma justa e sempre insuficiente homenagem ao Prof. Fábio Nusdeo, desta feita a convite do Prof. Fernando Facury Scaff, ambos queridos amigos de longa data. Juristas de escol pelos quais nutro inesgotável admiração e cujas companhias são sempre extremamente prazerosas e instrutivas, quer em eventos acadêmicos, profissionais ou sociais.

Renovada honra, pois, Nusdeo e Scaff muito me honraram em diversas ocasiões. Nusdeo, dentre outras oportunidades, ao me aceitar, na última década do século passado, como seu orientando no curso de Mestrado em Direito Econômico, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP; ao me orientar e ensinar de forma extremamente competente e dedicada; ao me convidar para integrar o rol de autores da obra “O Direito Econômico na Atualidade”, por ele coordenada[1]; e por ser meu permanente orientador. Scaff, também dentre outras oportunidades, honrou-me como coautor da referida obra, ao lado de outros queridos e renomados sempre orientandos do homenageado; ao aceitar de pronto o convite para participar – e fazê-lo de forma brilhante – do Seminário sobre Reforma Tributária realizado por AASP e IASP[2]; e, agora, com o convite para participar dessa importante obra, pelos temas abordados, pela qualidade e importância dos colegas coautores e pela magnitude do homenageado.

Registro, assim, não só a alegria e a honra por participar desta obra, mas, também, a profunda admiração e a sincera gratidão que nutro pelos queridos amigos Nusdeo e Scaff.

No que respeita ao tema que me coube, com o qual lido profissionalmente há mais de duas décadas, foi objeto de estudos e reflexões também à época da precisa orientação que recebi do homenageado, parcialmente publicados há longa data[3]. Continua, porém, merecedor de atenção não apenas por permanecer atual, mas, também, por parecer próximo de balizamento pelo Supremo Tribunal Federal[4].

A seguir, atendendo aos limites próprios para o momento, apresentarei breves observações acerca do histórico legislativo e dos principais aspectos fáticos atinentes ao critério ainda adotado, no Brasil, para rateio das cotas de exportação de açúcar aos mercados preferenciais, bem assim das principais vicissitudes de que parece padecer tal sistemática.

1. Histórico legislativo e aspectos fáticos relevantes.

O setor sucroenergético esteve, até 31/05/1995, sob rígida política intervencionista, inclusive no que respeita às exportações de açúcar. Até mesmo as emissões das antigas “guias de exportação” desse produto sujeitavam-se ao controle prévio da Secretaria de Desenvolvimento Regional da Presidência da República (SDR), nos termos da Lei nº 8.117/90.

Findo o regime intervencionista, as exportações de açúcar deixaram de submeter-se a prévio controle governamental, sujeitando-se, quando muito, à incidência de imposto de exportação, conforme previsto na Medida Provisória nº 1064, de 27/07/95, sucessivamente reeditada desde então, até ser convertida na Lei nº 9.362/96.

Ocorre que os dispositivos legais vigentes quando do regime intervencionista (artigos 7º da Lei nº 4.870/65 e 2º da Lei nº 8.117/90) atribuíram às usinas nordestinas o privilégio no atendimento aos chamados “mercados preferenciais”[5]. Com o término do regime intervencionista (31/05/95), deixou de existir dispositivo legal expresso neste sentido, que só voltou a viger quando da 15ª reedição da Medida Provisória nº 1.476/96, posteriormente convertida na Lei nº 9.362/96.

Estabelece o artigo 7º da Lei nº 9.362/96, ainda em vigor e em redação semelhante aos dispositivos anteriores[6][7], que “Os volumes de produtos derivados de cana-de-açúcar destinados aos mercados preferenciais serão atribuídos à Região Norte/Nordeste, tendo em conta o seu estágio sócio-econômico”.

Todavia, essa proteção de mercado à Região Norte-Nordeste, por conta de seu “atual estágio de desenvolvimento econômico” (artigo 7º da Lei nº 4.870/65) – ou simplesmente de seu “estágio sócio-econômico” (artigo 7º da Lei nº 9.362/96) – vigora há mais de 50 anos (desde 1965) sem que tenha realmente auxiliado a erradicação da fome ou da miséria do povo nordestino mais humilde[8].

Interessante notar, também, que, ao contrário do que possa parecer, a indústria sucroenergética nordestina há muito não depende desta benesse para subsistir (e nem seria razoável que todo um setor agroindustrial de uma região brasileira dependesse integralmente da política econômica, agrícola e internacional de alguns países importadores de açúcar). No ano 2000, por exemplo, a Região Norte-Nordeste exportou 1,87 milhão de toneladas de açúcar, das quais apenas 164 mil toneladas foram exportadas aos EUA[9], principal mercado preferencial de açúcar atendido pelos produtores brasileiros.

Aliás, naquela safra o Norte-Nordeste produziu 3,46 milhões de toneladas de açúcar, sendo que o faturamento resultante das exportações de açúcar aos EUA correspondeu a apenas 4,01% do resultado total da comercialização de açúcar e etanol das usinas nordestinas, enquanto 29,36% decorreram da comercialização de açúcar no próprio Brasil, 23,78% da exportação de açúcar para o resto do mundo e 42,85% da comercialização de etanol anidro e hidratado. Se, a título de exercício, os EUA não tivessem comprado um quilo sequer de açúcar brasileiro na safra 2000/2001 e o Norte-Nordeste tivesse exportado para o resto do mundo o respectivo volume da cota americana que então lhe coube, aquela região teria sofrido uma redução de apenas 1,87% no valor líquido total percebido pela produção de açúcar e etanol da safra[10], percentual esse plenamente suportável e muito inferior às oscilações usuais de mercado, inclusive aquelas decorrentes da constante variação cambial a que se sujeitam os exportadores brasileiros em geral (dela ora se beneficiando, ora se prejudicando).

E mais, como o critério de distribuição das cotas para atendimento do mercado preferencial, dentre as unidades nordestinas, leva em consideração a produção média dos cinco anos anteriores, aquelas não exportadoras e, o que é pior, aquelas com atividades já encerradas[11] (e que, portanto, não mais geram um emprego sequer no setor), lucram com a simples revenda de suas cotas às unidades ativas, efetivamente exportadoras e com capacidade operacional de atendê-las.

A pouca relevância da cota americana – e dos demais mercados preferenciais – no faturamento das usinas do Norte e Nordeste, assim como sua inocuidade para a redução das desigualdades regionais, correspondem à realidade dos fatos desde sempre.

Ao examinar período mais recente, a renomada Tendências Consultoria Integrada atesta que, “Comparativamente ao grau de variação do preço internacional do açúcar, a participação da receita adicional de venda de açúcar na Cota Americana possui peso muito modesto. No ano 2017/2018, essa participação foi de 5,45% em relação ao valor bruto produzido na venda de açúcar, e de 3,38% em relação ao valor bruto produzido total (incluindo açúcar e etanol). Nos demais anos, essa participação foi substancialmente menor. Essa contribuição se revela particularmente irrisória levando-se em conta a volatilidade do preço internacional do açúcar, que possui desvio padrão estimado no período de um ano correspondente a 34,5%. Ou seja, a lucratividade adicional da Cota Americana em relação ao faturamento e aos resultados totais das usinas do N/NE é de pouca relevância, uma vez que a receita adicional da Costa Americana é usualmente inferior a um décimo do desvio padrão da variação do preço do açúcar internacional no período de um ano. Efeitos de variações usuais do preço do açúcar são muito superiores à relevância da Cota Americana na receita adicional dos usineiros”.

Concluem os pareceristas que “A mensagem principal que emerge da análise econômica, informada pela teoria microeconômica e pelo histórico recente de produção de açúcar, é que a alocação da Cota Americana às regiões Norte e Nordeste assemelha-se muito mais a uma simples transferência de recursos a proprietários e acionistas de usinas na região do que a uma política de estímulo ao mercado de trabalho local”[12].

Postos o fundamento legal para o rateio, exclusivamente dentre os produtores localizados na “Região Norte/Nordeste”, das cotas de exportação de açúcar aos mercados preferenciais e, no aspecto fático histórico, sua impertinência ou imprestabilidade para provocar qualquer alteração relevante no “estágio sócio-econômico” da referida região, vejamos os principais óbices constitucionais a tal prática.

2. Aspectos constitucionais envolvidos.

O exame do tema de que ora se cuida demanda averiguar se houve adequada ponderação entre os preceitos constitucionais atinentes, em especial, à redução das desigualdades regionais e sociais, à livre iniciativa, à livre concorrência e à isonomia, conforme critérios de razoabilidade e proporcionalidade. A norma intervencionista[13] será válida se adequada e proporcional aos princípios e objetivos da ordem econômica e da própria intervenção, podendo restringir uns em benefício de outros especificamente perseguidos em determinada situação, mas jamais neutralizar ou desconsiderar por completo qualquer deles.

Comecemos, assim, por examinar se estão atendidos os requisitos de razoabilidade e proporcionalidade.

2.1 Razoabilidade e proporcionalidade.

Ainda que umbilicalmente ligados, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade guardam certa distinção: enquanto aquele diz respeito ao “mínimo aceitável”, de modo a afastar soluções, interpretações ou conclusões absurdas ou teratológicas, este implica a busca da “melhor solução possível” dentre aquelas que se apresentem em determinado momento e/ou situação, assim entendida a mais adequada, a mais ponderada conforme critérios de necessidade e adequação, com a consequente “proibição do excesso”. Assim, nada impede que em determinada situação a opção adotada possa mostrar-se razoável (enquanto não absurda ou teratológica), mas não proporcional (se tiver sido preterida outra opção que se mostrasse, para os fins e necessidades envolvidos, mais adequada, de menor onerosidade ou simplesmente menos excessiva).

De qualquer forma, independentemente das distinções entre os institutos, importa considerar tratar-se, no caso, não apenas de garantia de obediência aos ditames do Estado Democrático de Direito e aos direitos fundamentais, mas, pragmaticamente e ao que importa à análise ora desenvolvida, da única forma viável para compor satisfatoriamente aparentes conflitos entre princípios.

Com efeito, o conflito aparente entre dois ou mais princípios exige imediata e satisfatória equalização. Nesta, não cabe definir qual princípio deva simplesmente se sobrepor ao outro; a prevalência de qualquer deles deverá ser definida em função de sua integral ponderação, face às circunstâncias concretas envolvidas. Ao contrário das regras, tratando-se de princípios, não se pode pretender que qualquer deles seja integralmente anulado em benefício de outro pois, enquanto princípios, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam consequências normativas de forma direta[14]. Cumpre ao hermeneuta, assim, no exame do caso concreto e em face da fundamentalidade dos valores envolvidos, proceder ao devido balanceamento dos princípios pertinentes à hipótese a partir, sobretudo, de considerações axiológicas[15].

Mesmo ausente referência expressa a seu respeito no texto constitucional, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade configuram, na esteira da jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, postulado constitucional autônomo que tem a sua sedes materiae específica na disposição constitucional que disciplina o devido processo legal para fins de qualquer privação de liberdade ou de bens (artigo 5º, LIV da Constituição Federal)[16], como já decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal em diversas ocasiões[17].

Em suma, trata-se de princípio cujo pressuposto é a igualdade entre os bens e valores guardados pela Constituição, que “impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens”[18]. Por força do princípio da proporcionalidade, “as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas”[19].

O limite na aplicação da proporcionalidade reside na manutenção do conteúdo mínimo de cada princípio; estes, no processo integrativo, podem ser ponderados de forma a se dar maior peso àqueles mais diretamente vinculados ao bem jurídico envolvido, mas jamais, repita-se, qualquer dos princípios constitucionais poderá ser integralmente anulado, suprimido. Assim é que, ao dispor acerca da proteção dos direitos do consumidor, por exemplo, não poderá o Estado estabelecer regras tão rígidas a ponto de inviabilizar por completo a livre iniciativa ou a livre concorrência. Já estas não podem ser exercidas de forma ilimitada, absoluta ou irrestrita. De seu exercício, portanto, não poderá resultar dano relevante ao consumidor ou ao meio ambiente.

Assim é que qualquer ato da Administração, dentre os quais a ação interventiva, deve resistir ao teste da proporcionalidade, quer no sentido da exigência do “mínimo razoável” (proibição de excesso), quer no da necessária e adequada ponderação entre os princípios constitucionais envolvidos.

Por mais nobres que sejam os fins, há limites quanto aos meios passíveis de serem utilizados, pois, O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais”[20].

Essa orientação aplica-se especialmente ao controle de medidas que importem discriminações entre particulares, na medida em que “o distanciamento da igualdade exige que a medida seja adequada, necessária e proporcional”. Adequadaé a medida cuja utilização provoque efeitos que contribuam para a promoção gradual da finalidade extrafiscal”. Necessáriaé a medida que, dentre todas disponíveis e igualmente adequadas para atingir dada finalidade, seja a menos restritiva relativamente ao princípio da igualdade. Por exemplo, se a finalidade (…) é promover o desenvolvimento de determinada região, o meio escolhido, além de contribuir para a promoção gradual desse desenvolvimento, deve ser o meio menos restritivo, dentre os disponíveis, no que concerne ao princípio da igualdade. O fundamento de validade da exigência de necessidade decorre da própria positivação de vários princípios constitucionais que devem, ao mesmo tempo, ser realizados: ao ter que atingir não só um ideal de desenvolvimento regional, mas, também e simultaneamente, um ideal de igualdade, o ente estatal está obrigado a escolher aquele meio que promova o primeiro sem restringir desnecessariamente o segundo”. Proporcionalé a medida cuja utilização provoque mais efeitos positivos do que negativos à promoção dos princípios constitucionais. (…) O fundamento de validade da exigência de proporcionalidade decorre da própria positivação de um bloco de princípios que deve ser realizado em conjunto: ao ter que promover a ordem constitucional, ao invés de restringi-la, o ente estatal está obrigado a escolher aquele meio que promova, na sua inteireza, mais a ordem constitucional do que a restrinja”[21].

Ocorre que a distribuição da cota de exportação aos mercados preferenciais exclusivamente entre os produtores da região Norte-Nordeste não se mostra: (a) adequada, por não contribuir com a redução das desigualdades regionais, na medida em que não se exige qualquer contrapartida de quem recebe a vantagem na forma de investimento de interesse público[22], nem é a participação na cota tão atrativa a ponto de levar outros produtores a se instalar naquelas regiões, ou de ali manter os que estão lá instalados; (b) necessária, pois o incentivo à região Norte-Nordeste pode ser feito mediante os instrumentos expressamente indicados no § 2º do artigo 43 da Constituição (como se verá adiante), não se justificando a utilização de outros quando não demonstrada a insuficiência daqueles (que seriam meios menos gravosos para a consecução do objetivo, sem prejudicar o acesso dos produtores das demais regiões de exportar aos mercados preferenciais internacionais), ainda mais quando importem quebra da igualdade entre competidores[23]; ou (c) proporcional, pois, a pretexto de incentivar regiões, restringe a livre competição entre os produtores nacionais que desejam exportar seus produtos aos mercados preferenciais.

Vale dizer, mesmo parecendo pretender “almejar a redução das desigualdades regionais”, a discriminação “não é adequada à persecução ou ao fomento desse objetivo”, pois “a atribuição de uma reserva de mercado absoluta a um dado grupo de produtores não possui o condão de promover o aumento comparativo do desenvolvimento econômico e social das regiões em que estes produtores atuam”. Tampouco se exige “um mínimo de contrapartidas desses produtores”, como “obrigações de realização de investimentos para a persecução da redução das desigualdades regionais, especialmente em termos de ganhos de eficiência que propiciassem aos produtores da região não mais depender das cotas”, nem foram estabelecidas “medidas de acompanhamento no que tange ao seu impacto no desenvolvimento regional”, tudo a caracterizar “clara inadequação da medida colocada pelo artigo 7º da Lei 9.362/96 para o atingimento de sua finalidade, ou mesmo seu fomento”[24].

Pergunta-se: após mais de 50 anos em nada contribuindo para a redução das desigualdades regionais e sociais, é razoável que a determinação de que se cuida subsista ad eternum ou por conta do “estágio sócio-econômico” da “Região Norte/Nordeste”, sem que sequer se saiba em que medida ou proporção precisaria tal estágio ser alterado para justificar o fim de tão radical discriminação?!

Por essas e outras razões, “O que se vê, na situação enfrentada, é a integral supressão de princípios constitucionais sem a correspondente satisfação, em igual proporção, do outro (redução da desigualdade regional) situado na fronteira oposta da colisão. Pesadas as desvantagens dos meios (que são eloquentes) e as vantagens dos fins (que são pouco evidentes), percebe-se uma relação desmedida, desequilibrada, desproporcional, contaminada pelo excesso e pelo déficit de razoabilidade, não justificável à luz da razão prática (irracionalidade) e, por isso mesmo, agressiva, injusta, distanciada do cumprimento do princípio da reserva de lei proporcional, revelando, em síntese, quanto à lei compreensiva, a precipitação de inconstitucionalidade. A operação do legislador não preservou sequer o núcleo essencial dos princípios sobre o qual incidiu a restrição”[25].

Não houve, em suma, ponderação entre os princípios da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades regionais e sociais e os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e isonomia. Estes foram manifestamente violados (como se verá a seguir); aqueles, sequer tangenciados pela medida restritiva ora em exame. Diante disso, impõe-se uma última conclusão: a distribuição da cota de exportação de açúcar aos mercados preferenciais apenas aos produtores do Norte-Nordeste configura medida desproporcional para fomentar o desenvolvimento regional, materializando verdadeiro “privilégio odioso”[26].

2.2 Livre iniciativa e livre concorrência.

Considerando não serem relevantes para o presente estudo os requisitos para a exploração direta de atividade econômica pelo Estado, importa mais concretamente, nesta oportunidade, o disposto nos seus artigos 170 e 174, que regulam a intervenção indireta. Aquele estabelece os fundamentos, a finalidade e os princípios da ordem econômica, enquanto este delimita a atuação do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica.

Como se sabe, são fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa[27], tendo por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Para tanto, devem ser observados os seguintes princípios: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio-ambiente[28]; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País (artigo 170, caput e incisos[29]).

É expressamente assegurado a todos, ainda, o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Nos termos do artigo 174 da Constituição Federal, a intervenção do Estado sobre o domínio econômico[30] deve ser entendida como “pressão do Estado sobre a economia para devolvê-la à normalidade”[31]. Normalidade, no contexto da ordem econômica, significa “manter um regime de livre concorrência”30, tal como previsto nas leis que regulamentam a competência das agências reguladoras, de órgãos como o BACEN e, de amplitude geral, do CADE.

A destinação das funções previstas para o Estado, agente normativo e regulador, no caput do artigo 174 (fiscalizar, incentivar e planejar, determinantemente para o setor público e indicativamente para o privado), é, portanto, a atividade econômica em regime de livre concorrência. Destaque-se, dentre elas, o incentivo que aqui toma, então, o sentido de promover a economia privada, sem o emprego de meios coativos,

A atuação do Estado, portanto, está devidamente balizada pela Constituição Federal. Não lhe é permitido vedar o exercício de atividade econômica lícita e regular, menos ainda de modo a privilegiar determinados agentes do mercado em detrimento de outros, anulando por completo a livre iniciativa e a livre concorrência[32]. Se é fato que a livre iniciativa e a livre concorrência não são direitos absolutos, também é assente que não poderiam ser totalmente anuladas, muito menos em prol de uma prática que, como se viu, mostrou-se insuficiente ou mesmo irrelevante para a suposta finalidade de redução das desigualdades regionais e sociais, não obstante venha sendo adotada por mais de meio século.

A vedação em questão poderia, eventualmente, justificar-se durante o longo período em que vigorou a rígida intervenção no setor sucroenergético[33], em face das supostas benesses decorrentes do regime interventivo com oferta, demanda e preços justos em tese assegurados pela legislação então em vigor (Lei n. 4.870/65). O mesmo não se admite no livre mercado.

Finda a intervenção, livre iniciativa e livre concorrência devem necessariamente vigorar por completo, quando muito limitadas apenas parcialmente, desde que de forma razoável e proporcional, mediante adequada ponderação com os demais princípios constitucionais de observância obrigatória, como demonstrado no tópico anterior.

A determinação de que os mercados preferenciais sejam atendidos exclusivamente pelos produtores de determinada região alija os demais, proibindo-os de participar dos mesmos mercados e, ainda, possibilita àqueles condições diferenciadas para concorrerem nos demais mercados, externos e internos. É manifesto o excesso de tal providência que, a pretexto de dar cumprimento a um dos princípios da ordem econômica (redução das desigualdades regionais[34]), mitiga tão profundamente os princípios da livre iniciativa e livre concorrência, em relação aos quais exige-se do Estado uma atuação neutra[35].

2.3 Redução das desigualdades regionais e sociais.

Além de a restrição de que ora se cuida em nada ter contribuído, conforme retro exposto, para a redução das desigualdades regionais e sociais nos mais de 50 anos de vigência, há outros relevantes aspectos a serem considerados a esse respeito.

O legislador é competente para impor aos agentes econômicos condutas tendentes a fazer atuar os princípios gerais previstos nos artigos 3º, III (erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais) e 170, VII (redução das desigualdades regionais e sociais), ambos da Constituição Federal, mas a legitimidade das regras assim editadas afere-se pelo critério de validação finalística. Como visto, as medidas adotadas com vistas à aplicação concreta de um princípio devem ser compatíveis com os demais princípios, em juízo de ponderação característico da proporcionalidade. Mas, não é só.

Devem ser necessariamente observadas as regras constitucionais específicas que regulam o modo de produção normativa e, dessa forma, limitam a competência do legislador. A Constituição Federal se reporta, no artigo 170, a princípios tais como defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais e tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte, que não são diretamente ligados à atividade econômica, mas sim ao modelo econômico e político particularmente adotado no texto constitucional. Ocorre que, ao deles tratar, deve o legislador observar os requisitos e condições consubstanciados nas regras constantes dos Títulos que cuidam especificamente desses temas[36]. Afinal, “relativamente às normas mais amplas (princípios), as regras exercem função definitória (de concretização), na medida em que delimitam o comportamento que deverá ser adotado para concretizar as finalidades estabelecidas pelos princípios”. É por essa razão que “se as normas forem do mesmo nível hierárquico, e ocorrer um autêntico conflito, deve ser dada primazia à regra”[37].

No que respeita à redução das desigualdades regionais e sociais, além de caracterizarem objetivo fundamental da República[38], constituindo princípio a ser observado pelo legislador na produção de normas as mais variadas[39], determina a Constituição Federal também os meios (regras) para que seja atingida.

Conquanto seja possível a intervenção do Estado em esfera reservada ao particular, mediante a edição de normas destinadas a dar aplicação aos princípios do artigo 170 da Constituição Federal, o exercício da competência legislativa deve obedecer às regras constitucionais que densificam esses princípios, criando pautas a serem observadas pelo legislador. Do contrário, tais regras seriam inúteis e sem sentido; nada valeriam.

O artigo 43 da Constituição Federal que fixa as regras para a atuação do Estado objetivando a redução das desigualdades regionais. Nele deve ser buscado o supedâneo constitucional para a ação da União destinada ao desenvolvimento orgânico de um complexo geoeconômico e à redução destas desigualdades. Ali se determina que “a União poderá articular sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e à redução das desigualdades regionais”. Ali se exige que lei complementar disponha sobre as condições para a integração das regiões em desenvolvimento e para a composição dos organismos regionais (§ 1º).

É fato que o § 2º do mesmo dispositivo prevê que os incentivos regionais “compreenderão, além de outros, na forma da lei”, aqueles ali indicados. Ocorre que os outros incentivos que forem fixados na forma da lei deverão, necessariamente, estar inseridos em articulação planejada de ações de natureza político-organizacional tendentes a essa finalidade, enquanto instrumento para que a União reduza as desigualdades sociais e regionais[40]. Ademais, todas as medidas relacionadas no § 2º do artigo 43 em comento para incentivar o desenvolvimento econômico e regional envolvem o direcionamento de recursos públicos às regiões menos favorecidas, através de renúncia de receitas (subsídios de custos e tarifas de responsabilidade do Poder Público, taxas de juros favorecidos, desonerações fiscais) ou de realização despesas (incentivo e cooperação para o combate das secas). Além dessas medidas, são permitidas outras que igualmente deverão ser custeadas pela União.

Por fim, não se admite que a União, a pretexto de favorecer uma região, crie distinções que impliquem discriminações em um setor econômico privado, cuja atividade obedece aos padrões do livre mercado. Os incentivos devem levar em conta que a regionalização, não obstante os contrastes entre as regiões, não pode significar confronto, mas sim “visar à harmonização, ao intercâmbio, ao inter-relacionamento proveitoso para as diferentes zonas”[41].

Em suma, qualquer medida de fomento destinada ao desenvolvimento regional e à redução das desigualdades sociais deve, necessariamente, atender ao seguinte: (a) estar encartada em conjunto de ações que caracterize um “plano” de desenvolvimento regional; (b) ser financiada com recursos públicos; (c) não criar distorções que impliquem discriminações em um setor econômico privado; e (d) visar à harmonização com as demais Regiões do País, em observância e interpretação sistemática dos diversos dispositivos constitucionais aplicáveis ao tema.[42]

A restrição do atendimento ao mercado preferencial de açúcar a produtores de determinada região, como se viu, não atende a qualquer desses requisitos. Vai, na verdade, na contramão do quanto ali disposto, do que resulta sua incompatibilidade com o artigo 43 da Constituição Federal.

2.4 Isonomia.

Se é certo que a isonomia implica tratar não apenas igualmente os iguais, mas, também, desigualmente os desiguais, isso deve ser feito dentro dos parâmetros legais e constitucionais, de modo proporcional e razoável, ou seja, no que respeita aos desiguais, necessariamente na medida de suas desigualdades. Em se tratando de desiguais, somente se legitimam sob a ótica da isonomia, assim, medidas que objetivem “desigualar situações díspares, conferindo-lhes tratamentos correspondentes à diversidade que encerram”[43].

Ocorre que as restrições de que se cuida não dizem respeito às diversidades ou desigualdades existentes entre os agentes econômicos envolvidos e não objetivam reduzi-las. Dizem respeito, supostamente, a desigualdades atinentes às regiões em que se localizam uns e outros agentes econômicos, o que, por si só, demonstra a impertinência da discriminação entre os agentes, mesmo porque as desigualdades entre as regiões em questão (ou entre suas populações) não se equiparam nem se assemelham àquelas porventura existentes entre os produtores de açúcar nelas localizados.

De qualquer modo, a discriminação não se deu – como não se dá – na medida das desigualdades quer das regiões ou de suas populações, quer dos agentes econômicos envolvidos.

Como já referido, limitadas as vendas ao mercado preferencial a apenas determinado grupo de produtores, os não beneficiados são indevidamente alijados e, aos ungidos pela benesse legal, asseguradas condições diferenciadas para concorrerem nos demais mercados, externos e internos. Há sacrifício de uns em benefício de outros[44], forçando-se o particular a suprir a atividade estatal (que “faz caridade com o chapéu alheio”) e, pior, prejudicando-o em benefício de seus concorrentes, inclusive afastando a igualdade de condições nos mercados em que efetivamente concorrem. Cria-se desarmonia entre as regiões e respectivos produtores nelas localizados, tratados com inaceitável discriminação.

Ocorre que o Estado não pode incentivar uns tirando recursos de outros, tal qual Robin Hood. Isso não é incentivo. É esbulho da propriedade privada, contrariando garantia constitucional e princípio da ordem econômica[45].

Vê-se que, ao contrário de “tratamento desigual na medida das desigualdades”, há, na situação de que se cuida, excesso e ilegítima discriminação entre agentes econômicos, com anulação, como antes exposto, da livre concorrência e da livre iniciativa. Ao anular a livre concorrência, contraria-se também a isonomia, em que aquele princípio se funda primordialmente[46].

Aliás, a prática fere não só a isonomia, como outros princípios de Direito Econômico, regras básicas cujo não reconhecimento formal pelo sistema configura uma das principais causas dos distúrbios hodiernamente verificados, expostos pelo homenageado ao sustentar a importância de uma Codificação do Direito Econômico Brasileiro[47]. Dentre os princípios assim considerados pelo homenageado e não observados pelo critério de rateio de cotas de exportação de que ora se cuida tem-se o da “Limitação no Tempo”[48]; o da “Avaliação”[49]; e o da “Isonomia Específica”[50].

3. Conclusões.

Procurou-se demonstrar, nessa honrosa oportunidade, as principais vicissitudes de que padece o antigo e ainda vigente critério de rateio, exclusivamente dentre os produtores da “Região Norte/Nordeste”, das cotas de exportação de açúcar aos mercados preferenciais. São elas, em apertada síntese:

  1. a) É ultrapassado e ineficiente, pois em nada contribuiu para a redução das desigualdades regionais ou sociais nos mais de 50 anos em que se encontra em vigor, como era de se esperar, vez que irrelevante e inócuo para tal finalidade ou para a subsistência das indústrias sucroenergéticas estabelecidas no Norte e Nordeste.
  2. b) Contraria os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, por tratar-se de discriminação que não cumpre os requisitos de adequação, necessidade e proporcionalidade, não tendo havido a indispensável ponderação entre os princípios da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades regionais e sociais e os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e isonomia.
  3. c) Não se justifica ao menos após findo o regime de rígida intervenção no setor sucroenergético (que vigorou por décadas, até 31/05/1995). Na época de mercado controlado, as restrições talvez se legitimassem em face das supostas benesses decorrentes do regime interventivo, como oferta, demanda e preços justos em tese assegurados pela legislação então em vigor. No livre mercado, contudo, não é dado ao Estado vedar o exercício de atividade econômica lícita, menos ainda de modo a privilegiar determinados agentes em detrimento de outros, anulando por completo a livre iniciativa e a livre concorrência.
  4. d) É incompatível com os requisitos impostos no artigo 43 da Constituição Federal, por (a) não estar encartado em conjunto de ações que caracterize um “plano” de desenvolvimento regional; (b) não ser financiado com recursos públicos; (c) criar distorções que implicam discriminações em um setor econômico privado; e (d) não visar à harmonização com as demais Regiões do País.
  5. e) Contraria o princípio da isonomia, tanto ao anular a livre concorrência (inclusive gerando vantagens competitivas a uns, em detrimento de outros) quanto ao tratar desigualmente os desiguais, mas não na medida de suas desigualdades, tampouco em razão delas ou objetivando reduzi-las. As possíveis desigualdades existentes entre os produtores do Norte e Nordeste e aqueles localizados nas demais regiões do Brasil não se equiparam às desigualdades entre as regiões (ou suas populações) em que uns e outros exercem suas atividades. Não se justifica a reserva de mercado, menos ainda a pretexto de reduzir desigualdades regionais e sociais (a cuja medida, de qualquer modo, não correspondem a restrição imposta ou seus efeitos), e não aquelas porventura existentes entre os próprios agentes econômicos envolvidos.

Não se legitima, portanto, a manutenção de mercado preferencial cativo aos produtores nordestinos, impondo-se o término do mecanismo já esgotado[51], verdadeiro privilégio que em nada auxilia a erradicar a pobreza, tampouco contribui para a melhora da qualidade de vida do povo nordestino ou do “estágio sócio-econômico” daquela região, contrariando os ditames constitucionais atinentes aos princípios gerais da atividade econômica, dentre outros.

Mário Luiz Oliveira da Costa – Advogado militante na área de Direito Tributário, com cursos de especialização em Direito Tributário (pelo Centro de Extensão Universitária) e Direito Empresarial (pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Diretor e Conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT). Sócio do escritório Dias de Souza Advogados Associados, em São Paulo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ávila, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Rev. de Direito Administrativo nº 215, jan/mar-1999.

ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 4ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005.

BASTOS, Celso. Comentários à Constituição do Brasil, 3º volume, tomo III. São Paulo: Saraiva, 1992.

Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1993.

CLÈVE, Clémerson Merlin. Parecer jurídico datado de 10 de abril de 2017, constante dos autos do RE nº 1.007.860-SP (STF).

COSTA, Mário Luiz Oliveira da. Setor Sucroalcooleiro – da rígida intervenção ao livre mercado. São Paulo: Método, 2003.

Grau, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica), 8ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 12a edição. São Paulo: Malheiros, 1999.

MENDES, Gilmar Ferreira. A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Repertório IOB de Jurisprudência – 1a quinzena de dezembro de 1994 – nº 23/94, Caderno 1.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, Márcia Azanha Ferraz Dias de. A Desregulamentação do Setor Sucroalcooleiro do Brasil (Tese de Doutorado – ESALQ/USP). Americana, SP: Caminho Editorial, 2000.

NUSDEO, Fábio. Fundamentos para uma Codificação do Direito Econômico. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

PEREIRA NETO, Caio Mario da Silva. Parecer jurídico datado de 22 de abril de 2014, constante dos autos do RE nº 1.007.860-SP (STF).

SCAFF, Fernando Facury. Tributação, livre-concorrência e incentivos fiscais. O Direito Econômico na Atualidade, coord. Fábio Nusdeo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição, 2ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

SOUZA, Hamilton Dias de. Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico, em 10º Simpósio Nacional IOB de Direito Tributário – Grandes Temas Tributários da Atualidade. São Paulo: IOB, 2001 (assim como diversos textos, estudos e profícuas trocas de ideias sobre o tema objeto deste artigo).

Tendências Consultoria Integrada. Parecer sobre a razoabilidade econômica da distribuição atual da “cota americana”, datado de 19 de setembro de 2019 e assinado por GUEDES FILHO, Ernesto Moreira; MADEIRA, Gabriel de Abreu; FUSCHINI, Gabriela de Oliveira; e MARCANTONIO JUNIOR, Angelo, constante dos autos do RE nº 1.007.860-SP (STF).

[1] São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015.

[2] Em 08/04/2019, sob coordenação minha e de Fabiana Lopes Pinto Santello.

[3] COSTA, 2003, em especial páginas 45-58 e 137-140.

[4] A repercussão geral da questão constitucional envolvida foi reconhecida pelo Plenário do STF, por unanimidade, em 26/10/2017, ocasião em que o Rel. Min. Ricardo Lewandowski asseverou que “as questões jurídicas postas nos autos transcendem os interesses subjetivos das partes nele envolvidas, havendo relevância do ponto de vista econômico, político, social e jurídico quanto à exata compreensão da regra disposta no art. 7º da Lei 9.362/1996” (RE nº 1.007.860-SP).

[5] Dentre os quais se sobressai o norte-americano. Sendo o custo de produção do açúcar nos Estados Unidos da América significativamente superior àquele verificado nos tradicionais países produtores / exportadores e não sendo a produção norte-americana suficiente a suprir o consumo interno daquele produto, a importação de açúcar pelos EUA é controlada, limitada a volumes anualmente fixados pelo governo norte-americano em relação a cada país exportador, de modo a somente ser importado o necessário a suprir a diferença de demanda não atendida pelos produtores norte-americanos. As importações em volumes excedentes àqueles fixados, ainda que formalmente possíveis, na prática mostram-se inviáveis face às barreiras tarifárias impostas pelo fisco norte-americano. O controle dá-se pelo sistema variável de tarifas incidentes na importação (Tariff Rate Quota), como demonstra Moraes (2000, página 35).

[6] Lei nº 4.870/65: “Art. 7º – À região Norte-Nordeste, em vista do seu atual estágio de desenvolvimento econômico, será atribuído, prioritariamente, o contigente de açúcar destinado aos mercados preferenciais”.

[7] Lei nº 8.117/90: “Art. 2° – A quota de exportação de açúcar para o mercado preferencial norte-americano será atendida, prioritariamente, pelas unidades industriais da região Nordeste”.

[8] Além de contrariar diversos preceitos constitucionais, como se verá a seguir.

[9] O volume médio da “cota americana” é inferior a 160 mil toneladas/ano (TENDÊNCIAS, 2019, página 17).

[10] Conforme dados oficiais de produção e exportação da Secretaria de Produção e Comercialização do Ministério da Agricultura e do Abastecimento e da UNICA – União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo.

[11] Que, na safra 2000/2001, correspondiam a aproximadamente 10% das 60 usinas dentre as quais a cota americana foi distribuída.

[12] Tendências, 2019, páginas 20 e 50.

[13] Sendo o dispositivo legal em questão, indubitavelmente, norma que possibilita a intervenção do Estado sobre o domínio econômico, não concorrendo diretamente com os agentes privados, mas restringindo e direcionando suas atuações.

[14] ÁVILA, citando Alexy, 1999, página 157.

[15] SOUZA, 2001, página 23.

[16] MENDES, 1994, página 469.

[17] Como quando do julgamento da liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.158-8, em que se asseverou que “a cláusula do devido processo legal (…) deve ser entendida (…), sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituídas do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal” (julgamento em 19/12/1994, DOU de 26/05/1995, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

[18] CANOTILHO, 1993, página 228.

[19] MELLO, 1999, página 67.

[20] ADI 2551 MC-QO/MG, Rel. Min. Celso de Mello – DJ: 20/04/2006.

[21] Ávila, 2005, páginas 162-163, grifos não originais.

[22] O que demonstra não se tratar de incentivo de caráter geral, mas sim de privilégio concedido a determinados produtores.

[23] Com efeito, “a disciplina ora tratada constitui medida gravosa que desatende a exigência da proporcionalidade quanto ao requisito da necessidade, implicando manifestação de excesso (ideia da vedação do excesso) no tratamento da matéria pelo Poder Legislativo” (Clève, 2017, página 61).

[24] Pereira Neto, 2014, páginas 20-21.

[25] Clève, 2017, página 70.

[26] Já decidiu o STF que “(…) Não podem a lei, o decreto, os atos regimentais ou instruções normativas, e muito menos acordo firmado entre partes, superpor-se a preceito constitucional, instituindo privilégios para uns em detrimento de outros, posto que além de odiosos e iníquos, atentam contra os princípios éticos e morais que precipuamente devem reger os atos relacionados com a Administração Pública (…).” (MS 22.509/AGR – Rel. p/ acórdão Maurício Corrêa – DJ: 04/12/1996).

[27] Antes, ainda, é a livre iniciativa um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, IV da CF).

[28] Inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação, conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 42, de19/12/2003.

[29] Conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 6, de 15/08/1995, quanto ao último item.

[30] Adotando-se a clássica diferenciação entre a atuação do Estado “sobre” o domínio econômico e “no” domínio econômico (GRAU, 2003, página 82).

[31] SILVA, 2006, página 721.

[32] Já definiu o STF, por exemplo, que “a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção estatal na economia (…) não autoriza a violação ao princípio da livre iniciativa, fundamento da República (art. 1º) e da Ordem Econômica (art. 170, caput)” (RE nº 422.941-2, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 06/12/2005).

[33] Até 31/05/1995, a partir de quando foram paulatinamente liberados preços e volumes de comercialização de cana de açúcar, açúcar e etanol.

[34] Sem qualquer impacto a esse respeito (como visto) e sem atender às regras de observância obrigatória, em se tratando de medidas atinentes a tal princípio (como se verá a seguir).

[35] “O Estado, em sua posição neutra em relação ao princípio da livre concorrência, pode apenas intervir nas relações horizontais firmadas entre agentes de um setor não regulado para coibir o abuso do poder econômico. Não estando configurada essa situação, a atuação estatal que desiguala competidores caracteriza, ela mesma, atribuição de vantagem indevida e inconstitucional, por ofensa aos princípios da isonomia e livre concorrência.” (PEREIRA NETO, 2014, página 13)

[36] Mesmo porque os princípios admitem maior flexibilidade na mitigação parcial de um por outro de maior peso (sem que disto resulte a necessária exclusão do primeiro), enquanto as regras, embora admitam exceções, quando contraditadas provocam a necessária exclusão do dispositivo colidente.

[37] ÁVILA, 2005, páginas 83-85.

[38] CF, artigo 3º, III.

[39] CF, artigos 165, §7º; 170, VII; 174, §1º; e 192.

[40] “Não basta pois a mera presença dos órgãos federais visando uma facilitação no desempenho de seus misteres. Faz-se necessário mais; na verdade, um conjunto de medidas que fomente o desenvolvimento, remova os óbices que possam obstruí-lo. Os instrumentos a serem utilizados vêm definidos no § 2º desse artigo, ao qual remetemos o leitor interessado.” (BASTOS, 1992, página 286, grifo não original)

[41] MORAES, citando Sérgio de Andréa Ferreira, 2002, página 967.

[42] “É nesse sentido que se faz indispensável observar os mecanismos determinados no artigo 43, que pressupõem ação articulada da União, com destinação de recursos públicos ou com o manejo de política tributária, de modo a efetivamente incentivar determinada região, seu desenvolvimento e a redução das desigualdades, tudo sem gerar distorções ou discriminações entre os agentes privados e sempre visando a harmonização com as demais regiões. (…) Ainda que a expressão ‘além de outros’, contemplada no § 2º, do artigo 43, da Constituição Federal, possa ensejar a identificação de rol não exaustivo dos chamados ´incentivos regionais’, não se pode dizer que a ausência de taxatividade permitiria que um dos incentivos fosse a reserva de mercado. Cuida-se de assertiva que não resiste à necessária interpretação sistemática da Carta Magna e não compadece, a título de exemplo, com os artigos 151 e 174, da Constituição Federal e com os contornos da intervenção estatal no domínio econômico.” (Clève, 2017, páginas 71-72).

[43] STF, RE 231.924, Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Lewandowski, grifo não original (DJ 21/06/2011, p. 110/111).

[44] O que implica violação também ao princípio da proporcionalidade, conforme antes demonstrado (CANOTILHO, 1993, página 228).

[45] CF, artigos 5º, XXII e 170, II.

[46] SCAFF, 2015, página 302.

[47] NUSDEO, 1995, páginas 201 e seguintes.

[48] Na medida em que programas especiais de política econômica (se é que o discrímen de que se cuida possa ser assim caracterizado) devem ter seus prazos fixados na lei que os instituir, pois, ainda que se admita a renovação de benefícios que tenham se mostrado eficazes aos fins perquiridos e cuja subsistência se justifique, apenas com a limitação obrigatória assegura-se a não eternização de benefícios muitas vezes seriamente prejudiciais ao Estado ou às próprias relações econômicas, cuja revogação aqueles que deles se beneficiam acabam por obstacularizar com relativa facilidade, ao passo que a eventual renovação seria certamente mais dificultosa.

[49] O qual impõe que qualquer programa de maior relevo no campo da política econômica somente seja adotado – quanto mais mantido por décadas – após suficiente avaliação, baseado em pareceres técnicos e no sistema de audiências públicas, visto ser impossível estabelecer-se, a priori, uma certeza quanto à adequação técnica de qualquer medida, por mais nobre que possa ser o fim pretendido.

[50] No sentido de se assegurar, em todos os programas que envolvam incentivos de qualquer espécie às empresas privadas, o detalhamento especificado acerca das condições sob as quais estes serão aplicados, a fim de que se possibilite a qualquer interessado o pleno conhecimento das “regras do jogo”, viabilizando eventuais impugnações ou mesmo impedindo o locupletamento ou o constrangimento indevido para unidades empresariais não enquadradas de maneira estrita às hipóteses contempladas pelos programas ou às suas finalidades.

[51] Com a consequente distribuição da cota americana dentre todos os exportadores de açúcar do país, em um sistema, sugere-se, proporcional aos volumes de exportação individuais verificados em cada safra anterior. Ter-se-ia que possibilitar, também, a cessão onerosa destes direitos na medida em que, em muitos casos, os volumes de exportação individual autorizada seriam extremamente reduzidos, não justificando os próprios custos operacionais envolvidos.

Título do livro: Direito econômico contemporâneo – estudos em homenagem ao Professor Fábio Nusdeo.

Editora IASP – Ano de publicação: 2020 (edição digital) – ISBN: 9786587082035

Coordenação – Alexandre Evaristo Pinto / Fernando Facury Scaff