Veículo: Conjur
Autor(es): Luís Henrique da Costa Pires e Henrique Paiva de Siqueira
O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) sofreu sensível alteração pela Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, que deu início ao processo de reforma tributária no Brasil. A mudança consistiu na inclusão do inciso III ao §1º do artigo 156 da Constituição, autorizando que o imposto possa “ter a sua base de cálculo atualizada pelo Poder Executivo, conforme critérios estabelecidos em lei municipal”.
À medida que os municípios implementarem tal providência em larga escala, é legítimo esperar o surgimento de controvérsias em sua aplicação, que certamente repercutirão no Judiciário – especialmente por se tratar de um imposto que atinge milhões de pessoas físicas e jurídicas em mais de cinco mil municípios brasileiros.
A doutrina sobre o tema ainda é incipiente e tem se concentrado nas questões pertinentes à legitimidade da delegação ao Executivo autorizada pela nova regra, especialmente: (1) se implicaria violação à legalidade que caracteriza a obrigação tributária e é oponível mesmo ao poder constituinte derivado, considerando inclusive o entendimento sobre o tema adotado antes da publicação da EC nº 132/2023 (Tema 211/STF [1] e Súmula 160/STJ [2]); e (2) se a delegação permitiria o efetivo aumento da base de cálculo do IPTU ou apenas a atualização para recomposição da inflação [3]. Esse mesmo ângulo de discussão foi explorado nas poucas decisões que abordaram o assunto até o momento [4].
Outro ponto, todavia, merece especial atenção. Diz respeito aos limites da delegação contida no dispositivo introduzido pelo EC nº 132/2023, que facultou ao Executivo atualizar a base de cálculo em conformidade com critérios previstos em lei.
Isso porque, mesmo que a jurisprudência se firme no sentido de que a delegação conferida ao Executivo é legítima — na linha de que as normas constitucionais devem ser preservadas “sob pena de a revisão judicial menosprezar as decisões do constituinte derivado, equiparando-as às do legislador ordinário” [5] — é imprescindível o exame, caso a caso, quanto aos limites dessa delegação e os parâmetros que o Poder Executivo deve observar ao atualizar o valor da base de cálculo do imposto.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal tem, ao longo dos últimos anos, admitido pontualmente a delegação legislativa em matéria tributária, desde que a norma legal fixe o necessário para a identificação correta do tributo e relegue ao Executivo, mediante fixação de standards objetivos, os pontos passíveis de regulamentação via ato administrativo.
Isso não significa, evidentemente, a possibilidade de uma delegação irrestrita para o estabelecimento de aspectos essenciais da obrigação tributária. A observância de parâmetros objetivos e a fixação de limites são condições para que a delegação não incorra em transgressão ao princípio da legalidade.
Um dos marcos desse entendimento pode ser encontrado no julgado sobre o adicional devido pelos empregadores a título de Seguro de Acidente de Trabalho (SAT, atual RAT), quando se estabeleceu que, “em certos casos, entretanto, a aplicação da lei, no caso concreto, exige a aferição de dados e elementos”, de modo que, “nesses casos, a lei, fixando parâmetros e padrão, comete ao regulamento essa aferição”, configurando “regulamento delegado, intra legem, condizente com a ordem jurídico-constitucional” [6].
Mais recentemente, no julgamento do Tema 554, a corte reafirmou, a propósito do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), que “não se propõe uma deslegalização integral do Direito Tributário, muito menos a possibilidade de a lei atribuir ao Poder Executivo a competência para dispor acerca de qualquer dos aspectos fundamentais da regra-matriz de incidência”, mas legitimar a “delegação ao Executivo da competência para editar determinados atos normativos, com base em standards estabelecidos pelo legislador” [7].
No Tema 829, relativo à taxa para emissão de anotação de responsabilidade técnica, o STF reafirmou que o diálogo entre a lei e o decreto “deve-se dar em termos de subordinação, desenvolvimento e complementariedade”, a significar que o legislador deve fixar parâmetros (standards) que balizem a calibração do tributo pelo Executivo, pautados na razoabilidade. Nessa ordem de ideias, a delegação ao Executivo foi vista como legítima, porque “os elementos essenciais da exação podem ser encontrados nas leis de regência” e “foi no tocante ao aspecto quantitativo que se prescreveu o teto sob o qual o regulamento (…) poderá transitar para se fixar o valor da taxa, visando otimizar a justiça comutativa”.[8].
A ausência de “teto”, de seu turno, concorreu para o reconhecimento da ilegitimidade da delegação pertinente à Taxa do Siscomex (Tema 1.085), porque “não obstante a lei que instituiu o tributo tenha permitido o reajuste dos valores pelo Poder Executivo, o Legislador não fixou balizas mínimas e máximas para uma eventual delegação tributária” [9].
Em suma, a lei deve estabelecer critérios razoáveis e sindicáveis para a fixação da base de cálculo (ou da alíquota) do tributo por ato do Executivo, sem prejuízo de sua revisão pela própria lei e/ou mediante avaliação individual, não se admitindo delegações totais e/ou em branco.
Definição de valor venal Transportando esse entendimento ao IPTU e à delegação estabelecida pela EC nº 132/2023, é preciso que a lei municipal preveja com objetividade os critérios que permitam a avaliação dos imóveis estabelecidos na zona urbana do município o mais próximo possível do seu efetivo valor real. Sob nenhuma circunstância o Poder Executivo poderá ultrapassar esse limite.
Tal constatação é especialmente relevante quando se observa que não existe, quer na Constituição, quer no próprio CTN, uma definição precisa acerca do que se considera como “valor venal”. Tanto é assim que a jurisprudência se firmou no sentido de que o valor venal para fins de IPTU (artigo 33 do CTN) não é necessariamente o mesmo o valor venal utilizado para fins de ITBI (artigo 38 do CTN) [10].
Em se tratando de IPTU, as Plantas Genéricas de Valores costumam ser pautadas por critérios gerais como a localização, o tipo e o padrão construtivo do imóvel. Algumas leis municipais, como a de São Paulo, também preveem a aplicação de critérios de correção individuais relacionados ao padrão construtivo, à fachada do imóvel e à existência de condomínio edilício estabelecido. Tais elementos refletem práticas correntes no mercado imobiliário e tendem a aproximar o valor venal do valor de mercado.
Por outro lado, para que os critérios também sejam efetivamente sindicáveis, é essencial que a lei contenha a metodologia a ser observada pelo decreto. Aliás, a Constituição determina que todos os atos administrativos sejam motivados, com a exposição das razões de fato e de direito que o justificam, para permitir o devido controle da legalidade, sob pena de invalidade (artigo 37), o que corrobora o dever do Executivo de justificar os valores adotados.
Foi esse, inclusive, o racional adotado pela Suprema Corte no julgamento do Tema 1.117 [11], quando se decidiu que “é constitucional a lei municipal que delega ao Poder Executivo a avaliação individualizada, para fins de cobrança do IPTU, de imóvel novo não previsto na Planta Genérica de Valores, desde que fixados em lei os critérios para a avaliação técnica e assegurado ao contribuinte o direito ao contraditório”.
Embora o referido julgado se limitasse a definir se um imóvel não previsto na Planta Genérica (em regra, imóveis novos) poderia ser avaliado pelo Poder Executivo, decidiu-se que tal medida não implicaria violação ao princípio da legalidade, “desde que haja lei anterior indicativa de critérios claros e consistentes a serem considerados na avaliação”, além da necessária previsão de assegurar ao contribuinte o exercício do contraditório, o que, de resto, já é assegurado pelo artigo 148 do CTN.
É preciso, portanto, que a lei que delegue a atualização da base de cálculo do IPTU ao Executivo tenha densidade suficiente para, de um lado, preservar a competência do Legislativo mediante indicação de critérios objetivos a serem seguidos pelo Executivo e, de outro, permitir ao contribuinte apurar se tais limites foram observados na apuração do aspecto quantitativo.
Para além dessa questão, há ainda uma outra que merece atenção: o risco de aumento abrupto do IPTU de um exercício para outro, muito acima dos índices de inflação.
Isso porque, sob o ângulo da capacidade contributiva, da vedação ao confisco, da proporcionalidade e da razoabilidade, é de se questionar se pode o sujeito ativo, a partir da constatação de defasagem entre o preço do imóvel e o valor venal para fins de IPTU — às vezes, por culpa do próprio município, que deixa de atualizar a Planta Genérica por diversos exercícios — promover um aumento que comprometa a própria capacidade de pagamento. Como observado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Mato Grosso ao examinar tal ponto, “a proposta de reajuste tributário não pode levar em conta somente a realidade do mercado, até porque se trata de um patrimônio imobilizado do contribuinte” e “a valorização imobiliária não repercute direta e automaticamente sobre a renda do cidadão” [12].
Não por outra razão, algumas legislações, como a do município de São Paulo, preveem uma trava (10% para imóveis residenciais, por exemplo [13]) sobre o aumento nominal do imposto de um exercício para o outro. É importante que a legislação preveja mecanismos de contenção como esse, que limitem o reajuste anual, de modo a não asfixiar repentinamente os contribuintes e compatibilizar o interesse arrecadatório com o primado da previsibilidade.
Em conclusão, a EC nº 132/2023 promoveu relevante inovação ao permitir, nos termos da lei municipal, a atualização da base de cálculo do IPTU por decreto do Executivo. Contudo, a interpretação dessa norma deve se compatibilizar com os princípios constitucionais que estruturam o sistema tributário nacional. A Constituição segue exigindo que a definição dos elementos da hipótese de incidência – inclusive a base de cálculo — seja matéria reservada à lei em sentido formal, não se admitindo delegação ampla, irrestrita ou desvinculada de parâmetros objetivos, razoáveis e sindicáveis. A Lei municipal deve fixar limites claros ao Executivo, passíveis de conferência e
controle pelo contribuinte.
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[1] “A majoração do valor venal dos imóveis para efeito da cobrança de IPTU não prescinde da edição de lei em sentido formal, exigência que somente se pode afastar quando a atualização não excede os índices inflacionários anuais de correção monetária”.
[2] “É defeso, ao Município, atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária”.
[3] A respeito, citam-se os trabalhos de SANTOS, Laércio José Loureiro dos.
Reforma tributária e superação da Súmula 160 do STJ. Conjur, 2025. Disponível aqui. Acesso em 08/04/2025 e HARADA, Kyoshi. Aumento do IPTU por decreto. Migalhas, 2024. Disponível aqui. Acesso em 08/04/2025.
[4] “(…) o princípio da legalidade (art. 150, I, da Constituição) permanece incólume, impondo-se como dever inafastável da Administração Pública Municipal em qualquer alteração da base de cálculo dos tributos sob sua competência”, já que a nova redação do texto constitucional “não autorizou a alteração da base de cálculo, tampouco a majoração do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU diretamente via Decreto”, sendo sempre observável o quanto previsto na lei municipal. (TJ/PA, Processo 0833380-18.2022.8.14.0031, Desa. Rosileide Maria da Costa Cunha, J: 8/11/2024). Em outro sentido: ““a nova regra constitucional conferiu, a rigor, maior ‘autonomia’ ao Poder Executivo Municipal de aumentar ou diminuir o valor da base de cálculo do IPTU em função das variações do mercado imobiliário”. TJ/GO, Processo 5111677-28.2024.8.09.0001, Desa. Ana Cristina Ribeiro Pesternella França, J: 12/12/2024).
[5] “Contudo, é inegável que o parâmetro material de controle jurisdicional de normas constitucionais deve se projetar em extensão muito mais restrita do que aquele que é operado em face de normas infraconstitucionais, sob pena de a revisão judicial menosprezar as decisões do constituinte derivado, equiparando-as às do legislador ordinário” (ADI 5597, rel. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes, J: 18/10/2022 – Voto do Min. Gilmar Mendes).
[6] RE 343.446-2, Min. Carlos Velloso, J: 20/3/2003.
[7] RE n. 677.725, Min. Luiz Fux, J: 11/11//2021.
[8] RE 838.284, Min. Dias Toffoli, J: 19/10/2016.
[9] RE 1.258.934, Min. Dias Toffoli, J: 9/4/2020.
[10] Tema 1.113, RESP 1.937.821, Min. Gurgel de Faria, J: 24/2/2022.
[11] ARE 1.245.097, Min. Roberto Barroso, J: 5/6/2023.
[12] ADI 1002901-38.2023.8.11.0000, Desa. Serly Marcondes Alves, J:
30/3/223.
[13] Lei n. 15.889/2013, art. 9º, I.
É advogado no Dias de Souza Advogados Associados e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).
É advogado no Dias de Souza Advogados Associados e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).