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Artigos - 27/05/25

Douglas Odorizzi e Luis Felipe Rangel analisam, no JOTA, os problemas da interpretação da Receita Federal sobre o tratamento tributário da atualização dos créditos trabalhistas recebidos por pessoas físicas

Veículo: Jota
Autor(es): Douglas Guidini Odorizzi e Luís Felipe Vieira Rangel

Em vez de pôr fim a discussões já sanadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e com isso contribuir para o aumento da segurança jurídica, há temas em que a Receita Federal insiste em apequenar a Constituição em face de decretos e instruções normativas.

Um dos exemplos desse descompasso é a Solução de Consulta Cosit 30, de fevereiro de 2025, que admitiu a incidência do Imposto de Renda sobre a atualização monetária de créditos trabalhistas recebidos por pessoas físicas.

Com a manifestação, a Receita colide com o bom senso e acentua instabilidades e inseguranças.

O STF, ao julgar o Tema 808 da Repercussão Geral, foi categórico: não há incidência do Imposto de Renda sobre os juros de mora devidos pelo atraso no pagamento de remuneração por exercício de emprego, cargo ou função.

Amparada por sólida fundamentação jurídica, a decisão resgata a essência do Imposto de Renda de acordo com o artigo 153, inciso III, da Constituição: só se tributa o que representa acréscimo patrimonial, jamais a recomposição de uma perda.

Com base nessa premissa, o STF afirmou que os juros moratórios não se confundem com lucro, rendimento ou ganho. Trata-se de verba autônoma, cuja natureza é de indenização por dano emergente, ou seja, uma forma de compensar, ainda que imperfeitamente, os prejuízos suportados por quem deixou de receber no tempo certo o que lhe era devido. Não é possível conceber essa verba como riqueza nova. E onde não há riqueza, não há fato gerador.

A fundamentação serviu, no caso julgado pelo STF, para afastar a tributação nos juros recebidos por servidor público, mas nada justifica não estender o entendimento também a empregados do setor privado. É o que se confirma por meio da leitura conjunta de outros precedentes do STF.

Primeiro, quando se definiu que os créditos trabalhistas devem ser atualizados pela taxa Selic na fase judicial da falência (Tema 1.191). Segundo, pelo entendimento de que “a taxa Selic engloba juros e correção monetária” (ADC 58/DF e ADI 5.867/DF). Terceiro, que tanto no Tema 808 já referido, como no Tema 962, que tratou da Selic na repetição de indébito tributário, a corte concluiu que o referido índice não representa nenhum tipo de acréscimo patrimonial.

A Receita, porém, opta por fazer ouvidos moucos à autoridade do Supremo Tribunal Federal. Em sua interpretação, silencia a respeito do entendimento da Corte acerca da Taxa Selic e sustenta que os juros seriam uma coisa e a atualização monetária, outra. Os primeiros, segundo ela, estariam isentos por força da jurisprudência, enquanto a segunda configuraria “acréscimo” tributável.

O problema dessa leitura está no fato de que tanto juros como atualização visam preservar o valor real da obrigação. São instrumentos jurídicos distintos, mas funcionalmente convergentes. Mais ainda no caso de créditos trabalhistas em processos falimentares, nos quais, como visto, aplica-se a Selic.

A lógica adotada pela Receita Federal, desse modo, é inconsistente: parte da premissa de que, sendo tributável a verba principal reconhecida em favor do credor trabalhista na falência, também o seriam seus acréscimos.

No entanto, foi precisamente esse raciocínio que o STF rejeitou sob o fundamento de que “os juros de mora legais têm natureza jurídica autônoma em relação à natureza jurídica da verba em atraso… não constituem frutos civis (parcela acessória que, em regra, segue a sorte do principal) decorrentes da exploração econômica do capital”. A divergência entre a administração tributária e o controle jurisdicional de índole constitucional é clara.

Não se está, com isso, defendendo que os fundamentos da decisão fariam coisa julgada. Entretanto, é necessária alguma ponderação e razoabilidade no caso de decisões proferidas pelo STF em repercussão geral. Nesses casos, as razões essenciais e inafastáveis que sustentam o dispositivo da decisão assumem status diferenciado, de modo que ignorá-las equivale a esvaziar a própria legislação processual. Segundo esta, “A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé” (artigo 489, § 3º, CPC/2015).

A solução administrativa, além de tecnicamente inexata, revela uma espécie de resistência cultural do Fisco, pautada por uma lógica arrecadatória pouco criteriosa. É justamente esse tipo de conduta que corrói os pilares da segurança jurídica. O contribuinte — nesse caso, o trabalhador que, após anos de litígio, finalmente recebe o que lhe é devido — é punido duplamente: primeiro pela mora do empregador, depois pela tributação da indenização.

Mais grave é o precedente institucional e o fomento à litigiosidade. Se a Receita pode ignorar claros parâmetros definidos pela Corte Suprema, o que impede outras autoridades de fazerem o mesmo? Que valor verdadeiro tem, então, uma tese firmada com repercussão geral, se não orienta uniformemente a atuação estatal em um sistema de precedentes? É o que demonstram as Soluções de Consulta 10.008 e 10.009, publicadas em 15/4/2025, que refletem a adesão das regiões fiscais ao entendimento da
Cosit no mesmo tema aqui tratado.

A Constituição veda a tributação sem riqueza e exige do Estado coerência na aplicação do direito. Quando se tributa materialidade equivalente àquela que a Corte Suprema já reconheceu como mera recomposição de perda, não há justiça fiscal — há dissonância institucional. E onde o precedente é ignorado, não há segurança jurídica, apenas um simulacro de legalidade.

Douglas Guidini Odorizzi
Sócio do Dias de Souza Advogados Associados

Luís Felipe Vieira Rangel
Advogado no Dias de Souza Advogados Associados